quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Quanto vale uma caixa?

Muitos brasileiros, inclusive professores universitários e empresários, confundem “inovação” com “novidade”, e essa confusão torna mais difícil converter a pesquisa científica brasileira em empresas, empregos e salários.
Se o leitor (vamos chamá-lo de Airon) gostaria de ter uma ideia inovadora e assim enriquecer, deveria conhecer não a história de Steve Jobs, o criador da Apple e do iPad, mas a história de Malcom McLean, que ficou rico ao desenhar uma caixa de aço de 3 metros de comprimento, 2,4 metros de largura e 2,4 metros de altura. Essa caixa de metal foi uma inovação maior que o iPad — pois, ao menos por enquanto, o mundo vive sem iPads, mas não vive sem essas caixas de aço. Malcom desenhou o primeiro contêiner transmodal tal como o conhecemos hoje. Ele observava os operários num porto de Nova York sofrendo para descarregar algodão de um trem para carregá-lo num navio, e disse a um amigo:
— No próximo porto, mais operários vão sofrer para tirar o algodão do navio e colocá-lo num trem.
Seria muito melhor, pensou Malcom, se um único operário, talvez pilotando um guindaste, colocasse contêineres cheios no primeiro trem, e depois, no porto, um único operário tirasse os contêineres do trem e os colocasse num navio, e depois, no outro porto, um único operário tirasse os contêineres do navio e os colocasse no segundo trem, e depois, nalguma estação ferroviária de carga e descarga, um único operário tirasse os contêineres do trem e os colocasse em caminhões, quem sabe um contêiner por caminhão… No fundo, Malcom não teve apenas a ideia de fabricar uma caixa de aço, mas de fabricar uma caixa de aço padronizada, que coubesse em qualquer caminhão, em qualquer trem, em qualquer navio, que pudesse ser levantada por qualquer guindaste, que pudesse ser empilhada, que resistisse à chuva. “O contêiner foi uma das inovações mais revolucionárias na área dos transportes”, diz José Paulo Silveira, diretor associado da Macroplan, uma consultoria especializada em administração de empresas. “E estamos falando aqui, no limite, simplesmente de uma caixa enorme.”
Quase todos os brasileiros confundem “inovação” com “novidade”, diz Renato Cruz, repórter do jornal O Estado de S. Paulo; Renato escreveu uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado sobre inovação. “Talvez por conta da origem comum das duas palavras.” José Paulo confirma: a maioria de seus interlocutores associa a palavra “inovação” a algo mágico, e por isso fora do alcance das pessoas comuns. Muitos especialistas, Renato e José Paulo entre eles, acham que os brasileiros financiam boas universidades (na forma de impostos ou de mensalidades), mas, mesmo assim, não conseguem converter em dinheiro toda a pesquisa científica produzida no Brasil — porque os brasileiros não sabem direito o que significa a palavra inovação.
Esse é um problema difícil de resolver. Talvez Airon queira contratar o melhor redator publicitário do Brasil para escrever uma carta e explicar a cada brasileiro o que é, de verdade, inovação. Para mandar a carta a cada um dos brasileiros, Airon teria de comprar um banco de dados com o endereço de todo mundo (ou montar um). Uma empreitada dessas não sairia por menos de 1 bilhão de reais, pois bancos de dados com endereços atualizados são caros. Uma correspondência publicitária fantasticamente benfeita, contudo, será aberta por 10% dos destinatários. Em resumo, na melhor das hipóteses, mudar a cabeça de 19 milhões de brasileiros custaria mais ou menos 1 bilhão de reais — e levaria um tempão.
Desconte a poupança
Se uma pessoa não sabe o que é inovação, não é culpa só dela. Especialistas no assunto costumam dar uma explicação que, para eles, é precisa, mas que pessoas comuns tendem a embaralhar: “Inovação”, diz José Paulo, “implica sempre a geração de valor.” Geração de valor, para gente como José Paulo, tem um significado técnico específico e, para entendê-lo, Airon rabisca a tabela abaixo.

Airon usou L para representar lucro, R para receita total e D para despesas totais. Airon sabe que uma empresa deve dar lucro, isto é, deve ganhar mais do que gasta; deve até mesmo ganhar mais do que ganharia se mantivesse o dinheiro aplicado a juros num banco, e por isso Airon inclui nas despesas a receita que obteria se mantivesse o dinheiro numa caderneta de poupança. (Muitas empresas fazem essa conta.) E quanto aos números a e b?

Uma inovação pode ser qualquer coisa. A empresa talvez inove ao comprar tecnologia nova para os escritórios ou a fábrica, ao encomendar uma campanha publicitária atraente, ao mandar um grupo de funcionários para estudar na Alemanha, ao lançar um produto novo, ao reformar um produto velho, ao copiar um produto da concorrência (com mais recursos ou com menos recursos), ao adotar novos métodos de trabalho, ao aperfeiçoar os métodos existentes, ao abrir uma linda loja no shopping mais chique da cidade, ao fechar a linda loja no shopping mais chique da cidade para abrir cinco lojas em shoppings mais modestos, ao estrear uma página irada no Facebook, ao se manter longe das redes sociais, ao dar entrevista apenas para os repórteres do Fantástico, ao dar entrevista apenas para repórteres de jornais pequenos de cidades pequenas… Não importa o que faça, uma empresa só inova quando aumenta a receita ou reduz as despesas, isto é, quando a ou b ou ambos são números maiores que 1 — e quando os efeitos positivos da inovação duram.
Talvez a e também b sejam números maiores que 1, e nesse caso a receita vai aumentar e a despesa vai diminuir. Esse tipo de inovação é raro. Para entender o que pode acontecer com a empresa em razão de uma inovação, Airon esboça a tabela ao lado.
Então, como diz José Paulo, inovação deve “gerar valor”, ou, como Airon traduziu, dar lucro logo depois e bem depois da inovação. Airon faz questão de manter essa distinção em mente, pois às vezes uma empresa toma uma iniciativa que aumenta o lucro por alguns meses, mas, dois anos depois, ou três anos depois, aquela mesma iniciativa cobra seu preço. Por exemplo, quando a empresa demite gente demais: as despesas caem e o lucro aumenta, mas a empresa perde a capacidade de vender mais, de entregar o que vende, de atender bem os fregueses. “À esquerda do ponto em que a ideia agrega valor”, diz José Paulo, recorrendo à imagem da linha dos números, “ela é apenas uma ideia à espera de seu tempo. À direita, é uma inovação.”
O estoque das ideias
Antes de inovar, Airon deve ter boas ideias, e boas ideias não caem do céu. (Algumas até caem na cabeça de uns poucos felizardos, feito maçãs, mas são poucas.) Quase todos os países recorrem ao mesmo método para manter cheio o estoque de ideias: eles investem em pesquisa científica. Será que nesse ponto o Brasil vai bem?
O universo é complicado, o que naturalmente inclui as abelhas e o cérebro humano. Um cientista inglês, James Marshall, estudando abelhas, chegou à conclusão de que, dentro do cérebro humano, cada neurônio ataca quimicamente os neurônios vizinhos para impedir o cérebro de travar numa situação difícil — pois, numa situação difícil, tomar uma decisão qualquer é melhor do que não tomar decisão nenhuma. (Para saber mais, veja a Cálculo 12, pág. 12.) Isso é ciência. Isso é uma ideia. Se ninguém fizer nada com ela, não passa de uma ideia surgida de uma pesquisa científica. Caso um empresário mude os procedimentos de sua empresa, e obrigue os funcionários, na primeira oportunidade, a rever as decisões que tomaram em circunstâncias difíceis, isso talvez aumente a receita da empresa ou talvez reduza suas despesas — e aí a ideia virou inovação.
No Brasil, há um bom estoque com ideias, pois os brasileiros também produzem pesquisa científica. Em 2009, publicaram 32.900 artigos em periódicos científicos indexados; isso dá 2,7% da ciência mundial (o que é mais ou menos consistente com o tamanho da economia brasileira, de 3% da economia mundial). Ao todo, o Brasil forma uns 12 mil doutores e uns 40 mil mestres por ano, ao custo de 1,27% do produto interno bruto. (Para comparar, os Estados Unidos gastam 2,7% do PIB para formar mestres e doutores, o que é bastante, pois o PIB americano é 6,6 vezes maior que o brasileiro.) Por causa da história do Brasil, contudo, o cientista brasileiro não tenta vender suas ideias a um empresário e, mesmo que tentasse, o empresário brasileiro não tem o hábito de comprar ideias para transformá-las em lucros. “Há poucas décadas, o empresário brasileiro ganhava dinheiro sem investir diretamente em inovação”, explica Roberto Vermulm, diretor de desenvolvimento científico e tecnológico da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). “A indústria automobilística no Brasil é um exemplo. Ela chegou e provocou efeitos econômicos. Ela gerou empregos. Mas os resultados ficaram limitados, pois a capacidade de inovar era pequena.”
Talvez o cenário fosse melhor se o empresário brasileiro pagasse por inovações, pois, numa civilização capitalista, o cidadão tende a valorizar mais as coisas pelas quais paga diretamente. Mas o empresário banca apenas um quinto da pesquisa brasileira — os outros quatro quintos são bancados pelo Estado, com o dinheiro dos impostos (que, sendo de todos, muitas vezes é visto como não sendo de ninguém). Na Coreia do Sul (2,2% da economia mundial), o empresário banca 80% da produção científica, e por isso a Coreia, tendo menos habitantes e uma economia menor, fica à frente do Brasil em todas as listas de produção científica e de inovação. Se o empresário sul-coreano pagou por um artigo científico, ele não vai deixá-lo arquivado numa biblioteca, mas fará de tudo para transformá-lo em lucro.
Uns poucos números mostram mais claramente essas diferenças culturais. Dois funcionários do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), João Alberto de Negri e Mario Sergio Salerno, estudaram 70.000 empresas brasileiras e acharam apenas 300 que mereciam o rótulo de “inovadoras”. Segundo Renato Cruz, as empresas pequenas e médias dificultam a inovação no Brasil. A história é mais ou menos assim: toda empresa grande está no centro de uma comunidade de empresas menores, que lhe presta serviços. De pouco adianta só a empresa grande inovar: para que as inovações aumentem o valor de um setor inteiro da economia, muitas empresas desse mesmo setor precisam inovar também. “De modo geral”, diz Renato, “as empresas pequenas e médias não sabem o que é inovação.” Uma explicação possível: empresas pequenas e médias deveriam contratar mais engenheiros, mas o Brasil forma poucos engenheiros. Na Coreia do Sul, de cada 200 jovens que concluem uma faculdade, 40 concluem um curso de engenharia. Na China, são 58. No Brasil, são 9. (Em parte porque, de todos os jovens que terminam o ensino médio, só 11% terminam conhecendo toda a matemática que deveriam conhecer; sem saber matemática, o jovem estudante de engenharia por fim abandona o curso.) Pela lei da oferta e da procura, tais profissionais ficam mais caros, e a empresa de porte menor não pode contratar um deles, e então ela no fim das contas não emprega nenhuma pessoa capaz de compreender artigos científicos a ponto de transformá-los em inovação.
Na internet, existe um “manual da inovação”, que é conhecido como Manual de Oslo. Foi redigido em 2005 por funcionários da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico da Comissão Europeia (OCDE), e tem sido usado como referência por especialistas no assunto. Esse manual também é usado para criar as listas de países mais inovadores ou menos inovadores; ele detalha coisas como a formação de pessoal, o fluxo de informações, a cultura típica das empresas, o papel do governo. Na lista de 2008, o Brasil ficou na 42ª posição; nos seis primeiros lugares, ficaram Suécia, Suíça, Finlândia, Israel, Japão e Estados Unidos. A situação brasileira vem melhorando com o tempo, mas, mesmo assim, o Brasil está sempre mal colocado para o tamanho de sua economia e para a diversidade e a qualidade de sua produção científica.
Com o tempo, a mentalidade do empresário, do funcionário e do cientista brasileiro deve mudar, diz Roberto Vermulm; ela deve ficar mais ousada. Um dia vai se aproximar da mentalidade de Geoff Nicholson, que inventou o Post-it quando trabalhava na multinacional 3M. Ele tem uma definição de inovação que, segundo Renato Cruz (que leu muitas definições), é a melhor de todas: “Pesquisa é transformar dinheiro em conhecimento”, disse Geoff. “Inovação é transformar conhecimento em dinheiro.” Quando esse dia chegar, o brasileiro também será capaz de converter em lucros uma mera caixa enorme de metal.

FONTE: REVISTA CÁLCULO.